Texto da jornalista Tatiana Mendonça no Jornal A Tarde de domingo, 05/01/2020
O plano inicial era aproveitar a aposentadoria, depois de mais de 30 anos dando aulas em universidades públicas e fazendo pesquisas na área de genética. Mas uma semana depois de se despedir da vida acadêmica, a bióloga Kiyoko Abe-Sandes, filha de pai japonês e mãe baiana, já estava trabalhando de novo. Desta vez, numa clínica particular, a Singular Medicina de Precisão, que fornece diagnósticos personalizados a partir de exames genéticos. Como se não bastasse, Kiyoko também integra o projeto DNA do Brasil, lançado no mês passado. Esse será o primeiro grande mapeamento genético do país. A meta é sequenciar o genoma completo de 15 mil brasileiros, em seis capitais: Salvador, São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro e Vitória. A primeira etapa do projeto, com 3 mil pessoas, será financiada por uma empresa paulista, a Dasa. E como nada nessa vida é de graça, o acordo é que o grupo seja o escolhido para as fases posteriores, embora o financiamento público ainda não esteja garantido.
O projeto DNA do Brasil vai ser o primeiro grande mapeamento genético do Brasil. Como esse estudo vai situar o país em relação a outros mapeamentos no mundo?
Esse vai ser o primeiro que inclui um grande número de indivíduos da população brasileira. Se a gente olhar nos bancos de dados públicos, a gente vê que já tem alguma coisa feita com a população brasileira, mas é uma representatividade muito pequena. Agora nós vamos conhecer todos os variantes genéticos que a população apresenta e daí podemos ver se esses variantes estão ou não associados a doenças
Mas nós estamos muito atrasados?
Muito. O mapemento completo do genoma ficou pronto em 2000, 2001. A partir daí, vários países foram sequenciando os indivíduos em suas populações. Mas era um processo lento e caro. Há uns quatro, cinco anos é que esse processo começou a ficar mais barato. Antigamente, a gente analisava um gene, um a um. E como nós temos mais de 20 mil… E eles são grandes, então, era difícil. Hoje, a gente consegue fazer em dois, três dias um genoma completo. E com um custo de US$ 1 mil. Lembro que quando comecei a fazer sequenciamento genético – e trabalhei muitos anos com câncer hereditário – nós fazíamos sequenciamento de dois genes que são muito importantes para câncer de mama e ovário hereditário, o BRCA1 e o BRCA2. A gente levava quase que seis meses para poder concluir.
Por que os mapeamentos feitos em outros países não são aplicáveis ou extensíveis à população brasileira?
Nossa população é muito singular. Nós somos uma população completamente diferente das outras, formada a partir da mistura de três grandes grupos raciais: europeus, africanos e ameríndios. E há ainda as diferenças regionais. Nós temos no Brasil uma mistura que não é homogênea. No Sul há uma maior contribuição europeia. No Norte, há uma maior contribuição ameríndia. E aqui no Nordeste, principalmente na Bahia, há uma contribuição africana muito grande. O próprio estado, se a gente observa, é diferente. Há uma concentração de africanos maior no litoral e em algumas cidades que tiveram importância grande na época colonial. E quando a gente vai se afastando do litoral para o interior, a população vai ficando mais branca. Então, a gente não pode tomar os resultados de outros países como se fossem válidos para cá, de jeito nenhum. Pouquíssimas populações no mundo têm uma constituição como a nossa. E ela precisa ser estudada, entendida, para poder tratar de forma diferente os indivíduos que são diferentes.
O projeto DNA do Brasil vai sequenciar um grupo de pacientes que já é monitorado pelo Elsa, o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto, que acompanha desde 2008 a saúde de funcionários públicos de 35 a 74 anos, em seis capitais, incluindo Salvador. Quantas pessoas daqui irão participar do projeto?
Inicialmente, no Brasil todo, três mil pessoas vão ser sequenciadas, com o genoma completo. Vai ser uma escolha com a amostra de todos os estados que estão envolvidos, de forma aleatória. Nós ainda não sabemos quantas pessoas da Bahia serão sorteadas. O objetivo é mapear os 15 mil indivíduos acompanhados pelo Elsa para identificar doenças na população adulta. A gente sabe que à medida que você vai envelhecendo, aumenta a chance de você desenvolver doenças crônicas que estão associadas à idade, diabetes, hipertensão, doença cardiovascular, o próprio câncer. O Elsa acompanha essa população para ver como os hábitos, o estilo de vida, estão associados a essas doenças. São o que a gente chama de questões ambientais. Elas não interferem sozinhas. Interferem se você tiver alguns marcadores genéticos que predisponham o desenvolvimento das doenças.
É isso que vamos descobrir agora?
Exatamente. Então, aquele indivíduo que desenvolveu uma doença cardiovascular e tinha um estilo de vida adequado, uma alimentação adequada, por que ele desenvolveu? Ele tem alguns variantes genéticos que o predispõem a isso. É uma questão evolutiva, também. A gente tem uma função biológica, por mais que a gente invente qualquer outra coisa. Você nasce, amadurece sexualmente, perpetua a espécie, deixa descendentes, e pronto, acabou sua função biológica. Então, se acaba sua função biológica, não importa se você vai ter uma doença que lhe mate.
É cruel.
Do ponto de vista biológico, é assim. As outras coisas são invenção nossa. Mas como nós somos organismos sociais, nós também temos outra função, contribuir socialmente. Minha função biológica já acabou, meus filhos já são adultos, independentes, mas eu ainda tenho uma função social. Pelo menos eu acho… Formo pessoas que vão ser profissionais um pouco melhores, talvez.
Mas como esse mapeamento vai ser revelador da população brasileira se analisa um grupo restrito de pessoas?
Acho que vai ser uma informação importantíssima, uma resposta inicial, mas não representa ainda a população. Nem da Bahia, muito menos a população brasileira.Até porque agente não tem representantes do Norte, por exemplo, ou do Centro-Oeste. Tem um grupo da Universidade Federal do Pará que analisa a população de lá e as características são muito diferentes, tanto do ponto de vista de ancestralidade, como às vezes predisposição a algumas doenças. Por exemplo, câncer de estômago é muito mais frequente lá do que em outros lugares. A gente vai precisar ampliar esse mapeamento depois.
A previsão é que se sequenciem as três mil amostras em seis meses e as 15 mil, em dois anos. Mas só há verba garantida para esta primeira etapa, por meio de um financiamento privado. Como garantir a verba pública para o restante da pesquisa, neste cenário que estamos vivendo?
A gente sabe que houve um corte muito grande nessa área da educação. Pesquisa não é prioridade nesse governo, muito menos uma pesquisa na área de populações. É um campo espinhoso, porque muita gente pergunta: está estudando isso para quê? Mas é essa pesquisa de genética de população que dá base para os outros estudos. Se eu não conheço os variantes genéticos que estão associados a doenças, eu não posso saber qual é a vulnerabilidade daquela população. Se eu não conheço os variantes genéticos de resposta ao tratamento, não sei qual é o melhor tratamento para aquela população. A gente pode estar gastando um dinheiro desnecessário, usando informação de outras populações sem saber se são benéficas para a nossa
Quando se começou a falar em mapeamento genético, a promessa é de que seria uma revolução para a medicina, um negócio quase milagroso. Mas como esses mapeamentos influem de verdade na saúde do indivíduo?
A gente tem ainda pouca informação dessa área que a gente chama de farmacogenômica, que é mapear os variantes genéticos que estão associados a doenças, mas não só isso, mapear os variantes de resposta a drogas. Quando a gente diz que o indivíduo tomou tal droga e teve um efeito colateral, isso significa que ele tem um variante genético ou alguns variantes genéticos que fazem com que ele responda de forma diferente. É isso que a gente chama de tratamento personalizado. Por exemplo, há drogas específicas para tratar o indivíduo que tem mutação no gente BRCA1 ou BRCA2 e que tem câncer de mama ou ovário. E se fizer o tratamento convencional, responde pior. Então, é importante saber se tem a mutação. É ruim ter, porque lhe deixa vulnerável ao câncer, mas é bom que a gente saiba porque pode tratar de forma personalizada.
E essa personalização é realidade para que parcela da população brasileira?
A droga realmente é cara, mas é obrigatória para o tratamento. Se você tem a mutação, e a pessoa não pode adquirir, o governo é obrigado a fornecer.
A pessoa consegue descobrir pelo SUS se tem a mutação?
Não. O teste é um pouco caro, também. Alguns planos de saúde fazem. E às vezes a pessoa entra na Justiça para que seja feito.
A senhora pesquisa há muitos anos a incidência desses cânceres na Bahia. Quais são as descobertas mais recentes?
Num último trabalho, de doutorado de uma aluna, descobrimos nove mutações que não foram encontradas, ao menos por enquanto, em nenhum outro estado do Brasil. Esse estudo é com pacientes com câncer de mama. As duas mutações mais frequentes que nós encontramos são de origem espanhola, uma delas de origem galega. E aí tem uma explicação histórica. Muitos espanhóis que se estabeleceram aqui são da Galícia.
A senhora também pesquisa os casos de doenças raras em Monte Santo, no sertão baiano, associados aos casamentos cosanguíneos. Pelo que li, os estudos começaram a ser feitos lá em 2004. Neste período, foi possível evitar novos casos ou o que se faz é aprimorar os tratamentos?
As duas coisas. Tem uma doença que a incidência no mundo é de 1 a cada 300 mil nascidos vivos, e lá em Monte Santo é 1 a cada 5 mil. É a MPS VI. Os meninos antigamente vinham toda semana fazer tratamento em Salvador [a 363 Km]. Vinham para o Hospital das Clínicas, passavam o dia todo fazendo a infusão da enzima que eles têm deficiência, e no outro dia retornavam. E nós conseguimos reformar uma ala lá do hospital, montamos uma unidade para tratamento, treinamos o pessoal, e os meninos não precisam mais correr o risco de estar viajando. Fazem o tratamento lá. Nós também fazemos aconselhamento genético. Fizemos mais de 200 aconselhamentos, só eu fiz mais de 100. A gente conseguiu fechar essa família, fazer o heredograma, aquela árvore genealógica.Hoje tem em torno de 1400 indivíduos. Alguns diziam que não eram parentes, mas eram. É impossível não ser, com uma doença tão rara. O que nós observamos é que não nasceu mais nenhum indivíduo com a doença.